Entrevista com Rui Martinho, Presidente do IFAP

Rui Martinho refere que a agricultura portuguesa “está na linha da frente da integração das preocupações ambientais e de adaptação às alterações climáticas”. E é assim, em primeiro lugar, “porque são os agricultores que melhor do que ninguém percebem a importância decisiva para a sustentabilidade das suas explorações”. O Presidente do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP) reflete ainda sobre os problemas que se registaram com o PU2023 e analisa a temática dos Ecorregimes e das Medidas Agroambientais. 

Assumiu a presidência do IFAP em agosto de 2023. Como encara o desafio e quais são os grandes propósitos que considera ter pela frente?

O IFAP tem um papel absolutamente central na atividade do Ministério já que dele depende a operacionalização de uma parte decisiva dos instrumentos de política para o setor, em particular todos os regimes de apoio que têm financiamento dos fundos agrícolas europeus, nomeadamente o PDR2020 e o PEPAC. Assegurar a operacionalização eficaz destes instrumentos, fazê-lo de forma tão ágil e rápida quanto possível e em simultâneo salvaguardar a correta utilização dos fundos públicos, são os desafios que se colocam ao IFAP e que se colocam de forma permanente. É o que os agricultores e a sociedade esperam de nós. É um desafio difícil, de que conhecemos as dificuldades, mas que encaramos com otimismo, desde logo porque o IFAP tem ao seu serviço um conjunto de pessoas muito qualificadas e competentes e com uma enorme dedicação ao serviço público, que gostaria que fosse mais reconhecido.

Constrangimentos de liderar o IFAP, nomeadamente em 2024, quais realça?

No final de 2023 e em 2024 o IFAP tem estado confrontado com a necessidade de encontrar respostas que permitam minimizar o impacto de uma campanha do Pedido Único (PU2023) que decorreu de forma muito atribulada. E tem, em simultâneo, que assegurar que com o PU de 2024 regressamos a um quadro de normalidade e previsibilidade que é essencial para todo o setor e em particular para o próprio IFAP. Esta situação veio evidenciar ainda mais a necessidade premente de um investimento significativo no reforço dos meios e recursos do IFAP, nomeadamente no que se refere aos recursos humanos. Apesar da confiança que tenho na capacidade e na enorme dedicação das pessoas que trabalham no IFAP, sei que a resposta do IFAP pode estar seriamente em causa sem uma aposta grande no reforço e na valorização adequada dos recursos humanos do IFAP.

Como organismo pagador, o IFAP tem um papel fulcral no bom funcionamento do setor agrícola. 2023 foi um ano exigente em relação ao PU com vários problemas, entraves e desafios que tornaram a campanha muito difícil. Que balanço faz de tudo o que aconteceu e para 2024 que melhorias se podem esperar?

A campanha do PU2023 foi uma situação anormal, sob todos os aspetos. Para isso contribuiu uma PAC significativamente diferente das anteriores e exigindo um desenvolvimento legislativo e normativo nacional que sofreu grandes atrasos. Por outro lado, a necessidade daí decorrente de ajustar os sistemas informáticos, o ajustamento do setor às novas regras e a definição de orientações técnicas essenciais ao processo de candidatura, veio a prolongar o período de candidaturas muito além do que inicialmente era previsível e aceitável. E por fim, não sendo possível compactar o tempo necessário aos procedimentos de controlo e apuramento das ajudas, e a obrigatoriedade de implementação de um novo Sistema de Vigilância de Superfícies (SVS), com a possibilidade de ajustes das candidaturas em conformidade, conduziu a inevitáveis atrasos na realização dos pagamentos face aos calendários habituais. Apesar de todas estas dificuldades, o IFAP conseguiu minimizar esse impacto, absorvendo muitos dos atrasos a que era estranho, realizando todas as tarefas exigidas para o pagamento dos apoios, enquanto eram desenvolvidos novos sistemas e processos como o da vigilância das superfícies, novos processos de validação, etc. E isso foi possível, graças à dedicação e empenho das pessoas que trabalham no IFAP, muitas vezes com sacrifício pessoal, abdicando de férias e folgas, apesar do desgaste nos últimos anos com o processamento de medidas novas para dar resposta à Covid-19, à guerra da Ucrânia, entre outros, e com a forte limitação de recursos com que o IFAP se confronta. Mas o PU2024 será com certeza muito mais tranquilo, uma vez que as maiores causas da perturbação estão agora, em grande, medida ultrapassadas.

A digitalização é cada vez mais uma palavra-chave na Agricultura portuguesa. De que forma é que o IFAP também está a acompanhar esta evolução?

O próprio PU é um exemplo claro da evolução tecnológica que o IFAP tem implementado ao longo do tempo, em que cada ano se procura aumentar a interoperabilidade com outros sistemas da Administração Pública, aumentar a informação para pré-preenchimento do formulário e simplificar o processo tanto quanto possível. Outro exemplo, não tão visível, é a implementação da leitura inteligente de documentos nos pedidos de pagamento do investimento, que processa automaticamente documentos digitalizados como faturas e cheques entre ouros. E ainda o SVS – Sistema de Vigilância de Superfícies, é outro exemplo, onde se alia o processamento de imagens de satélite com algoritmos de Inteligência Artificial para a identificação de culturas. Destes exemplos, a que podíamos acrescentar muitos mais como o SIREAP, SNIRA, ou o SIP em que a aposta na melhoria contínua tem sido uma constante, destaco que o acompanhamento da digitalização por parte do IFAP já não é uma preocupação, mas sim algo que é natural e transversal a todo o IFAP no seu dia a dia.

Ecorregimes e Agroambientais

O tema do dossier desta edição da revista ‘Jovens Agricultores’ centra-se nos Ecorregimes e nas Medidas Agroambientais. Como analisa o IFAP a implementação destes dois eixos no âmbito do PEPAC e de que forma os requisitos de condicionalidade serão fáceis de executar, sem que os agricultores tenham grandes dores de cabeça?

Os regimes ecológicos e as medidas agroambientais são instrumentos essenciais no quadro da PAC e na capacidade de apoiar a necessária adaptação da atividade agrícola e pecuária aos desafios que se colocam. São intervenções que, pela sua natureza, pela forma como são “desenhadas”, colocam sempre dificuldades na sua implementação, em particular ao Organismo Pagador. E o organismo pagador não tem forma de tornar simples aquilo que não o é, o que acaba sempre por ter impacto em todos os envolvidos, em particular nos agricultores. Com o PEPAC, foi implementado neste âmbito um conjunto de novas intervenções e, no caso dos regimes ecológicos, regras de gestão financeiras novas que vieram tornar mais difícil aquilo que pela sua natureza já seria complicado. Mas estamos confiantes que o que aprendemos com as dificuldades do PU2023, a capacidade de adaptação dos agricultores e o profissionalismo e conhecimento das organizações de agricultores envolvidas, permitirá assegurar a implementação adequada destas intervenções.

Apesar dos Ecorregimes serem financiados pelo I Pilar da PAC (sem cofinanciamento nacional) e as Agroambientais enquadradas no II Pilar, a diferença entre ambos é muito ténue. Em que é que eles se distinguem verdadeiramente?

Pese embora as especificidades de cada uma e da situação concreta a que cada uma visa dar resposta, não existe uma diferença de natureza entre as intervenções incluídas nos Ecorregimes do I Pilar e as incluídas nas medidas ambiente e clima (Agroambientais) do II Pilar. O que as distingue decorre diretamente da sua inclusão no Pilar I ou no Pilar II. Em particular em termos de duração do compromisso e das regras de gestão financeira. Nos Ecorregimes temos compromissos anuais, nas agroambientais temos compromissos plurianuais. Nas agroambientais, a limitação da dotação financeira disponível conduz à limitação do acesso, enquanto nos Ecorregimes a regulamentação prevê a aplicação de rateio entre todos os candidatos.

Em Portugal, já temos muitos agricultores comprometidos com as práticas agrícolas amigas do clima e do ambiente. Mas ainda há um longo caminho a percorrer. Acredita que no final da década teremos uma agricultura mais verde, resiliente e competitiva?

Esta pergunta obriga-me a pedir que olhemos para trás e vejamos a profunda e continua transformação da agricultura portuguesa ao longo das últimas décadas, período em que o setor enfrentou desafios muito exigentes e em condições muitas vezes adversas. Não sei se haverá outro setor que tenha passado por transformações tão profundas com o setor agrícola.  Quem quer que hoje olhe para o setor não pode, de uma forma objetiva, deixar de reconhecer a enorme evolução em termos de competitividade e sustentabilidade e hoje a agricultura portuguesa está na linha da frente da integração das preocupações ambientais e de adaptação às alterações climática. E é assim, em primeiro lugar, porque são os agricultores que melhor do que ninguém percebem a importância decisiva para a sustentabilidade das suas explorações. Este é um caminho longo, mas a evolução contínua para uma agricultura mais verde, resiliente e competitiva está na própria natureza do nosso setor. E é isso que continuará a acontecer.

As alterações climáticas são um dos grandes desafios atuais e futuros da Agricultura portuguesa. Em que é que esta PAC 2023-2027 poderá, de facto, fazer a diferença na mitigação do problema?

Como acabei de referir, só podemos ter uma grande confiança na capacidade de resposta, de adaptação do setor a esta problemática, mas sei que esta adaptação obriga a uma intervenção pública que dê suporte ao esforço que é pedido aos agricultores. É importante desde logo que toda a sociedade perceba que o esforço que pedimos ao setor agrícola e aos agricultores tem de ser razoável, tem de ter presente a necessidade de garantir a sustentabilidade da atividade agrícola. Os instrumentos da PAC têm de ser capazes de garantir essa sustentabilidade, através de medidas de suporte ao rendimento, de medidas de suporte ao investimento que essa adaptação exige, e da capacidade de apoiar a produção de conhecimento e de o fazer chegar a todos os agricultores. O PEPAC tem intervenções que permitem assegurar essas respostas.

Confiança no futuro

A AJAP trabalha há 40 anos no apoio aos Jovens Agricultores, ao Jovem Empresário Rural e ao impulso dos territórios rurais e da Agricultura em geral. Contudo, o cenário em Portugal do envelhecimento do setor continua a ser uma realidade e que, em comparação com a média dos países europeus, é dramática. Na sua opinião, por que razão tem sido difícil atrair jovens e no futuro que volta tem de ser dada para inverter esta situação?

Não posso deixar de reconhecer a importância da AJAP no apoio aos jovens que se instalam na agricultura. Foi e continua a ser seguramente muito importante para ajudar muitos jovens a resolver problemas de todo o tipo com que se confrontam e tem sido um interlocutor e um parceiro privilegiado do IFAP. A AJAP tem também tido um papel muito importante na reivindicação de medidas específicas de apoio à instalação e na sua concretização. Mas essas medidas, que foram e continuam a ser indispensáveis, só muito dificilmente poderiam contrariar tendências de natureza estrutural que conduziram àquele envelhecimento. Quando fazemos comparações com outros países da Europa temos de ter em conta o ponto de partida e a persistência dos mais idosos na atividade de uma forma muito diversa face ao que acontece em muitos outros países da União Europeia. Considero que não existe nada mais importante para atrair jovens para a atividade agrícola do que dar visibilidade à enorme transformação do setor agrícola, nomeadamente no domínio tecnológico e do conhecimento. E as medidas específicas de apoio à instalação são cruciais para dar resposta e concretizar esse potencial.

O agroalimentar tem tido uma evolução positiva com as exportações a demonstrarem também uma grande oportunidade para a economia nacional e, claro, para as empresas. Nesta matéria, considera que o papel do IFAP também é decisivo? Num ano marcado por alguma conturbação política – eleições legislativas em março – como antevê 2024 em termos de exportações?

O IFAP tem uma importância decisiva no apoio financeiro ao setor agrícola e como tal a relevância é obvia em todos os aspetos da vida das empresas e das explorações agrícolas. As exportações do setor agroalimentar têm tido uma evolução extraordinária a longo dos anos e certamente vai continuar a evoluir positivamente. Não creio que situação política nacional, que não tem nada de excecional na vida democrática de um país, afete essa evolução. Por aí, não creio que haja razões para preocupação, mas sabemos todos que a atual situação internacional e algumas tendências em termos de evolução geopolítica justificam algumas preocupações.

Como presidente do IFAP que mensagem gostaria de deixar aos Jovens Agricultores, Agricultores e Empresários Agrícolas portugueses?

Uma mensagem de total confiança no futuro da agricultura portuguesa, na capacidade dos agricultores e empresários portugueses para dar continuidade à extraordinária evolução do setor ao longo das últimas décadas e de reforçar o prestígio da profissão. Os Jovens Agricultores têm aqui uma importância decisiva e responsabilidade particular a que estarão à altura. Por fim, dizer que o IFAP sabe que a sua razão de ser é dar suporte a esta evolução e a este esforço e que, como sempre tem acontecido, continuará totalmente empenhado em prestar um serviço de qualidade a todo o setor.

Nota: entrevista publicada na edição n.º 137 da Revista ‘Jovens Agricultores’, da AJAP. A sua reprodução, parcial ou na íntegra, requer autorização prévia da AJAP.