Rogério Ferreira, Diretor-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR), aborda em entrevista à revista Jovens Agricultores, questões como a desertificação de alguns territórios rurais, os desafios da transição ecológica e a necessidade de intensificação do processo de digitalização da agricultura. Para o Presidente da Comissão Diretiva da Autoridade de Gestão do PEPAC no Continente, a renovação geracional no setor “constitui um desafio que nos convoca a todos, agentes públicos e privados”, e deve ser um desígnio nacional e europeu.
Trabalha a área do Desenvolvimento Rural há mais de 15 anos. Como analisa a evolução do País nesta matéria?
Na última década e meia assistimos a uma renovação profunda, uma vitalidade crescente, do setor agroalimentar potenciando o desenvolvimento rural. O poder de atração do mundo rural tem-se intensificado, com maior incidência em consequência da pandemia, existindo sinais de retorno da população ao mundo rural, potenciando o desenvolvimento económico e social desses territórios. No ano em que comemoramos os 50 anos do 25 de abril, observamos um caminho de profundas diferenças neste processo de evolução, em particular, na valorização das paisagens e dos produtos endógenos, na arquitetura natural, na gastronomia e nas tradições culturais dos vários territórios. Um percurso longo, com imensos desafios pela frente. Ainda continuamos a assistir a uma tendência para a desertificação de alguns territórios rurais. No entanto, não podemos perder a perspetiva. O contributo das políticas públicas nacionais e locais é fundamental para potenciar o desenvolvimento rural, captando e fixando pessoas com o objetivo de criar valor nos territórios, emprego e qualidade de vida.
Tendo em conta que atravessamos um momento de viragem de paradigma, bem como as exigências da União Europeia (UE) em matéria ambiental e transição ecológica, quais são os constrangimentos e desafios que se colocam à Agricultura portuguesa?
O setor agrícola enfrenta grandes desafios em matéria ambiental de transição ecológica, em particular, porque necessita de garantir o maior volume de produção sustentável, com redução significativa dos fatores de produção. Importa assegurar o caminho da produção sustentável, salvaguardando a importância das questões agronómicas, económicas, sociais e ambientais, garantindo a proteção dos recursos naturais, com destaque para o solo, a água e a preservação da biodiversidade. Importa, assim, implementar novas fileiras para a valorização de subprodutos e biorresíduos de origem pecuária com potencial energético e de natureza orgânica, para fertilização. Promover a articulação entre as diferentes entidades apresenta-se como fulcral para incrementar o desenvolvimento do setor agrícola. Os desafios da transferência de conhecimento deverão continuar como prioritários para o setor, promovendo a dimensão da sustentabilidade da produção agrícola nacional. É crucial intensificar o processo de digitalização, de modo a disponibilizar informação de forma rápida, ágil, garantindo eficiência das ações entre todos os stakeholders envolvidos no processo. Urge acelerar o processo de simplificação quer nos procedimentos de licenciamento, quer no acesso aos fundos europeus. O PEPAC no Continente apresenta-se como um instrumento fundamental para dar resposta e contributo para o processo de transição ecológica.
Os agricultores portugueses estão a ser agentes de mudança neste processo, ao nível da digitalização, da tecnologia e das ferramentas cada vez mais disponíveis para a tal transição ecológica premente e necessária?
Sim. Importa apoiar para intensificar o processo de transição ecológica. No contexto atual, assistimos a um número crescente de explorações agrícolas a adotar tecnologias associadas à digitalização, mas também à automação e robótica, permitindo de forma clara uma racionalização do uso de mão de obra, da utilização de fatores de produção, com destaque para a água, fitofármacos e fertilizantes. Neste processo, verificam-se ganhos ambientais significativos, bem como uma otimização dos valores para a produção agrícola. Importa continuar a apoiar, de forma muito objetiva, as explorações de menor dimensão, potenciando o acesso à introdução de tecnologias eficientes, que contribuam para tomada de decisões assentes em dados obtidos de forma digital na exploração agrícola. É muito importante assegurar que o Sistema Nacional de Aconselhamento Agrícola e Florestal contribui de forma objetiva neste processo de mudança, bem como que a nova Rede AKIS se constitua como decisiva neste processo de apoio à transferência de conhecimento.
De que forma estão os agricultores portugueses a lidar com os desafios emergentes da Água, das Alterações Climáticas e das Secas?
Os agricultores portugueses estão na frente deste combate contra padrões climáticos cada vez mais imprevisíveis e assimétricos, adotando uma série de medidas, que, no seu conjunto configuram planos de ação. Desde logo, estão a investir em tecnologias de precisão, de utilização da água para rega, mais eficientes e sustentáveis, otimizando a sua eficiência. Os nossos agricultores estão atentos à importância de diversificar as espécies, variedades e cultivares agrícolas, optando por selecionar as mais resistentes à seca e menos dependentes do recurso água, o que auxilia na mitigação das ameaças associadas à escassez hídrica. Importa também salientar a utilização de boas práticas agrícolas sustentáveis, como a rotação de adequadas culturas e a adoção de ações de conservação do solo, melhorando a resiliência da produção agrícola face a condições climáticas adversas. Assistimos a um aumento da eficiência hídrica dos sistemas hidráulicos dos principais aproveitamentos hidroagrícolas, situando-se nos 75%, registando-se, por isso, uma melhoria significativa face ao previsto no Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água (PNUEA, 2012), de 65% para 2020. De salientar que os sistemas de rega para distribuição da água na parcela são considerados eficientes, permitindo uma eficiência hídrica média de 88%. Esta evolução está também refletida na redução dos consumos de água ocorrida entre 2002 e 2016 (-48%). Nos anos seguintes, em muitas regiões, os consumos têm estado relativamente estáveis e condicionados pelos vários períodos de escassez hídrica, mas cujo recurso a sistemas de rega eficientes contribuíram e contribuem para a sustentabilidade económica e ambiental da agricultura. A medida do Uso Eficiente da Água no PDR2020 revelou-se fundamental para apoio e otimização nos resultados para a promoção da eficiência hídrica. Mais de 100 mil hectares apoiados, num total de mais de 42 milhões de euros de apoio aprovado. Importa, assim, assegurar a continuidade no PEPAC no Continente promovendo a utilização da Intervenção C.1.1.1.2 «Uso eficiente da água», fundamental no apoio ao processo de melhoria contínua da eficiência hídrica no setor agrícola.
Temos ainda um País agrícola a duas velocidades, com alguns agricultores e explorações mais capacitados e preparados que outros?
Para além dos aspetos já mencionados, importa focarmo-nos e priorizarmos a intensificação do processo de digitalização da agricultura, bem como um reforço da formação de todos os agricultores, em particular os que gerem a pequena exploração. A agricultura familiar mantém uma presença social e territorial significativa no contexto da agricultura portuguesa. Em 2019, o peso dos produtores familiares no número de explorações agrícolas era de cerca de 93% e na SAU de 52%. Assim, apoiar a promoção do conhecimento e das competências ao nível das pequenas explorações agrícolas assume-se como prioritário. Também aqui, o AKIS nacional terá um desafio relevante a desempenhar envolvendo de forma muito proativa as associações e organizações de produtores, em particular, no apoio e acompanhamento técnico, bem como no acesso às novas tecnologias e à atualidade do ecossistema de inovação. A criação de redes de disseminação e demonstração localizadas em pontos estratégicos do território nacional, pode contribuir de forma decisiva para um acesso mais fácil a boas práticas e a uma maior interação entre os vários atores.
Qual tem sido o papel da DGADR no desenvolvimento do setor e de que forma tem sido decisiva na promoção das políticas públicas de apoio aos agricultores?
A DGADR tem um papel determinante e relevante em prol do desenvolvimento rural, com impacto em três grandes dimensões: na promoção e regulação da utilização do recurso água para uma agricultura de regadio eficiente; na promoção e regulação de modos de produção sustentáveis, produção biológica e produção integrada, como boas práticas agrícolas; e enquanto entidade potenciadora e disseminadora da formação e do conhecimento junto dos agricultores. Enquanto autoridade nacional do regadio tem contribuído de forma decisiva para a promoção do regadio coletivo em Portugal, apoiando e estimulando a reabilitação e modernização dos sistemas hidráulicos existentes, bem como o apoio à constituição de novas origens e de novos aproveitamentos hidroagrícolas. Releva ainda o papel fundamental para a determinação das tabelas de uso eficiente de água, ajustadas às diferentes regiões do território, bem como a supervisão de todas as entidades certificadoras de regantes. No que respeita ao estímulo e supervisão das boas práticas agrícolas, assumindo um papel determinante junto dos agricultores na adesão quer ao modo de produção biológico, quer ao modo de produção integrado ou outras práticas promotoras de uma produção sustentável. Importa mencionar os resultados da adesão ao Plano Estratégico do PEPAC, mais de 700 mil hectares de área de produção biológica e cerca de 400 mil hectares de área de produção integrada apoiados. Na dimensão da formação e do conhecimento, esta Direção-geral coordena a implementação da estratégia do AKIS, promovendo a partilha de boas práticas, de formação em contexto real, iniciativas locais e informação relevante para o desenvolvimento de uma agricultura sustentável.
PEPAC no Continente
É também Presidente da Comissão Diretiva da Autoridade de Gestão do PEPAC no Continente. Que balanço faz da implementação do Plano em Portugal e como analisa os constrangimentos que se registaram em 2023?
A operacionalização do instrumento de financiamento, em particular, no seu primeiro ano, traz consigo grandes desafios na sua operacionalização. Na generalidade, assistiu-se a uma procura superior ao programado no que respeita às medidas agroambientais previstas nos Eixos C e D do PEPAC no Continente, levando a uma necessidade de reforço adicional da despesa pública de mais de 290 milhões de euros. Importa, neste processo de operacionalização do Programa, continuar a envolver todos os intervenientes, em particular, as organizações de produtores agrícolas e florestais e as várias entidades na administração pública, para a facilitação de todo o processo de disponibilização das ajudas públicas ao setor. Encontramo-nos a efetuar um trabalho com muito empenho e foco numa operacionalização mais simples, com o grande objetivo de redução dos tempos de análise e decisão das candidaturas, bem como na criação de um acesso mais ágil e interoperável, facilitando um melhor acesso aos nossos agricultores e produtores florestais, disponibilizando um novo sistema de informação. A quem investe interessa ter acesso rápido ao financiamento, e a esta Autoridade de Gestão importa criar as condições para a simplificação, promovendo uma execução física e financeira mais célere. É o que estamos a colocar em prática.
A burocracia tem sido um dos grandes entraves à implementação dos Programas de Desenvolvimento Rural. Como será possível reduzi-la?
Existe margem para melhorarmos o processo de operacionalização, tornando-o mais eficaz, quer por via da simplificação ao nível do procedimento, quer ao nível da linguagem comunicacional utilizada. O conjunto de modificações, já operacionalizadas nos concursos PDR2020 abertos em 2023, confirmam que este é um caminho possível, salientando a título de exemplo, que a decisão do último aviso da Operação 2.1.4 «Ações de Informação» permitiu analisar candidaturas em menos de 30 dias. Foi apenas o início da transformação que se impõe na gestão dos Fundos Europeus Agrícolas, sobretudo num Programa desta natureza, com um alargado e diversificado universo de beneficiários e necessidades muito específicas, tendo a experiência demonstrado o potencial de transformação e simplificação que pretendemos operacionalizar no PEPAC no Continente. Acreditamos que o novo Sistema de Informação totalmente orientado para o agricultor, para o produtor florestal, bem como para os restantes beneficiários, apresenta-se como fundamental para o processo de simplificação em duas dimensões: um reforço muito relevante em matéria de interoperabilidade, quer ao nível das entidades do Ministério da Agricultura e Pescas, quer ao nível das restantes entidades da administração pública, bem como no processo de normalização dos vários formulários de candidatura face a diferentes tipologias de intervenção. A utilização de tecnologia nos processos de análise e decisão revela-se como fundamental para o sucesso da operacionalização em curso.
A sua reprogramação – já validada por Bruxelas – é imperativa? Em que aspetos considera ser fundamental algumas reconsiderações? E em que ponto está a reprogramação?
Esta segunda reprogramação ao PEPAC no Continente encontra-se na fase final de análise e decisão na Comissão Europeia e vem formalizar o reforço da contrapartida pública nacional para responder ao aumento da procura das medidas agroambientais e do apoio às zonas desfavorecidas, não existindo quaisquer constrangimentos para a sua aprovação, que se estima ocorrer no início do próximo mês de junho. Importa, agora, iniciarmos a terceira reprogramação em conjunto com o setor, respondendo aos desafios e anseios dos agricultores e produtores florestais, adaptando, assim, o Programa às expectativas dos seus potenciais beneficiários.
O PEPAC no Continente tem como grande baliza tornar a Agricultura Portuguesa mais resiliente às alterações climáticas e competitiva nos mercados, a criação de apoios e programas de investimento para Jovens Agricultores, visando não só a renovação geracional no campo, mas também na adoção de práticas agrícolas inovadoras e sustentáveis. Considera que teremos condições para implementar este desígnio?
O potencial económico e estratégico da agricultura e da floresta e a capacidade de inovar estrategicamente da nossa produção, aqui se incluindo jovens empresários agrícolas, inspiram-me confiança e certeza de que o setor está bem preparado para antecipar desafios futuros e para aplicar de forma sustentável, as oportunidades de financiamento que o PEPAC no Continente representa. Com um envelope financeiro global de 2,8 mil milhões de euros, mais de mil milhões de euros de apoio serão mobilizados para medidas de investimento na promoção do desenvolvimento rural, incluindo a renovação geracional do setor, através de medidas de apoio à Instalação de Jovens Agricultores, mas também para a otimização e modernização da produção, adoção de tecnologias de precisão e gestão sustentável dos recursos hídricos. Para pormos em marcha uma efetiva dinâmica de renovação do tecido agrícola importa integrar o potencial do setor e as oportunidades de financiamento no processo de acesso e de acompanhamento dos Jovens Agricultores, reinventando-o para garantir que os apoios são orientados para o setor de forma rápida e simples, de modo a serem atrativos e a fazer a diferença no País, corrigindo o que tem corrido menos bem nesta matéria. Estamos,
pois, conscientes do caminho a trilhar e do plano de ação que é primordial implementar. Importa assegurar uma redução clara da carga administrativa e um prémio atrativo, e trabalhar na complementaridade com os restantes fundos europeus e demais instrumentos de financiamento, para promover uma efetiva oferta em prol do investimento sustentável no setor agrícola e florestal.
A AJAP, com 41 anos de existência, trabalha no apoio aos Jovens Agricultores e na promoção do desenvolvimento dos territórios rurais e da Agricultura em geral. Ser Jovem Agricultor em Portugal, em 2024, é difícil, tendo em conta que o setor continua marcado por um envelhecimento preocupante? Como invertemos a tendência?
Tenho tido o privilégio de acompanhar bem de perto o trabalho desenvolvido pela AJAP, e posso testemunhar que constitui uma parcela essencial para o crescimento sustentável da agricultura em Portugal. A renovação geracional constitui um desafio que nos convoca a todos, agentes públicos e privados, em todo o espaço europeu, numa abordagem que deve ser estratégica e holística. A perceção que a sociedade tem da agricultura e da profissão de agricultor tem de ser invertida. Nas últimas décadas, e não apenas em Portugal, fomos assistindo à desvalorização do real impacto da agricultura e do produtor agrícola, que, nas gerações mais novas, conduz a que nem sequer seja equacionada como profissão de futuro. Esse reconhecimento tem de ser trabalhado e a atividade agrícola tem de recuperar a capacidade de atração que perdeu nas últimas décadas. Importa não perdermos de vista que esta nova geração de agricultores, de jovens empresários tem um nível de formação elevado, são nativos tecnológicos que dominam os processos de adaptação da agricultura à economia digital, com gosto e saber pelos sistemas de recolha e gestão de dados, soluções de biotecnologia, instrumentos de precisão e tecnologias de comunicação, automação e inteligência artificial, que aplicam nas suas explorações agrícolas. Assim, é crucial uma melhor comunicação ao público em geral, de modo a captar maior atratividade, mas assegurando conhecimento, experimentação em rede para o setor, e promovendo uma maior rentabilidade. O potencial existe. Temos de criar condições para garantir o acompanhamento dos projetos, promovendo uma maior articulação e responsabilização de todos os atores em prol do sucesso da renovação geracional.
Nota: entrevista publicada na edição n.º 138 da Revista ‘Jovens Agricultores’, da AJAP. A sua reprodução, parcial ou na íntegra, requer autorização prévia da AJAP.