“A IA traz um amplo potencial de transformação na forma como se gerem as explorações”

Ricardo Braga, Professor no Instituto Superior de Agronomia (ISA) e especialista em Agricultura de Precisão, analisa a revolução tecnológica no setor e a forma como a Inteligência Artificial (IA) está a transformar os campos e as explorações agrícolas.

Crédito da Foto: AJAP

O mundo e a agricultura estão em mudança. Estamos numa fase de transformação, impulsionada pela IA. Como tem sido em Portugal?

Tal como qualquer outro setor, a agricultura é permeável à mudança, tendo os produtores hoje plena noção de que, sem inovar, dificilmente será possível fazer face aos inúmeros desafios presentes e futuros. A IA não surgiu em 2023 com o ChatGPT. O que testemunhamos hoje é o resultado de décadas de desenvolvimento tecnológico, muitas vezes invisível ao público, e que apresenta múltiplas facetas com provas dadas como, por exemplo, a análise de imagem e reconhecimento automático de padrões, os modelos de linguagem natural ou a visão computacional e robótica inteligente. Os produtores já usam essas tecnologias muitas vezes sem se aperceberem disso, como é o caso das armadilhas digitais que reconhecem de forma autónoma as diferentes pragas e determinam a curva de voo. Ou quando voam um drone cartográfico ou pulverizador de forma autónoma e este é capaz de ler o terreno e otimizar a rota, mantendo a altura ao solo constante ou desviar-se de obstáculos. E de forma mais “consciente”, quando usam as ferramentas do tipo do ChatGPT para procurar informação ou simplificar um texto ou até mesmo para interagir diretamente com documentos técnicos. Os impactos são diversos e estão a concretizar-se na agricultura portuguesa de forma crescente. A atividade agrícola apresenta um risco elevadíssimo quando comparada com outras, por razões amplamente conhecidas. Tudo o que puder reduzir a incerteza e aumentar a eficácia dos processos é bem-vindo.

Quais são os impactos mais visíveis?

Na resposta anterior referi alguns impactos concretos da IA na agricultura. Mas há muitos mais, como a análise de imagens de deteção remota e reconhecimento automático de fugas ou linhas entupidas no sistema de rega ou até mesmo setores inteiros com pressão abaixo do necessário. Depois de devidamente treinada, a IA, tem a capacidade de detetar padrões em imagens de forma rápida e fidedigna e com isso tornar as tarefas dos gestores agrícolas mais simples, rápidas e baratas. Na prática isso pode significar passar de uma situação em que temos operadores de campo, cujo trabalho é andar no campo linha-abaixo, linha-acima à procura de problemas na rega e a proceder à sua reparação. É um trabalho essencial, mas ineficiente já que é preciso percorrer todas as linhas várias vezes em cada ciclo. Com a ajuda da IA e das imagens térmicas, as fugas, linhas entupidas ou setores inteiros são detetados automaticamente e o operador de campo deixa de fazer essa parte do trabalho e dedica-se “apenas” a navegar para os problemas previamente georreferenciados no terreno e a resolvê-los. É fazer mais em muito menos tempo. Na previsão da colheita a IA consegue ingerir dados de origens múltiplas e produzir modelos preditivos, mesmo que muitas vezes não conheçamos diretamente a relação causa-efeito. Do ponto de vista da engenharia pura são ferramentas poderosas. Além disso, têm a capacidade de ficar cada vez mais robustos com cada nova acumulação de dados (novo ano, nova carta, etc.). A par de fazerem previsões da colheita, os modelos de produtividade baseados em IA também funcionam como assistentes virtuais (com acesso também virtualmente a todo o conhecimento relevante produzido) que alertam os técnicos de campo para problemas, sugerem soluções e podem mesmo tomar e implementar decisões de forma autónoma. Para isso acontecer, é claro que os modelos devem estar bem treinados e robustos, o que acontece após várias campanhas de colheita e integração de dados.

A gestão de dados, recolha e interpretação de imagens, drones e previsões meteorológicas são exemplos de ferramentas de suporte. Como impacta tudo isto a agricultura?

Sim, desde os anos 60 do século passado que se trabalha no desenvolvimento de modelos de produtividade das culturas. Entre estes, um subgrupo a que se dedicou muito esforço foram os modelos mecanísticos que procuram simular digitalmente o detalhe fisiológico das culturas e com isso ajudar à sua gestão operacional (e.g. fertilização e rega), entre outras possibilidades. Entretanto, o aumento da capacidade computacional e a explosão da sensorização tornou disponível uma quantidade de dados de várias fontes num volume e natureza que estes modelos mecanísticos não conseguem acompanhar porque o seu desenvolvimento, apesar de robusto, é demasiado lento e caro. É nesse contexto que os modelos baseados em IA ganham grande protagonismo. Não são tão eficazes a compreender os mecanismos por detrás dos processos, mas são rapidíssimos a usar múltiplas fontes e formatos de dados, mesmo que à partida não consigamos entender a relação. E no contexto para que foram treinados funcionam bem. Temos exemplos destes modelos a funcionar em explorações em Portugal.

Em que culturas tem sido mais utilizada a IA em Portugal?

Por alguns dos exemplos que dei anteriormente (armadilhas, drones, etc.) penso que é possível inferir que o impacto da IA é geral e não específico em determinadas culturas. Especificamente em relação à aplicação da IA como ferramenta de suporte à gestão operacional, o tal assistente virtual, há diversos projetos a trabalhar nesse sentido em culturas como a vinha ou o tomate.

Crédito da Foto: AJAP

Que constrangimentos existem e como podem ser superados?

O grande constrangimento na aplicação da IA é a extrema necessidade de dados para treino dos modelos. É raro as explorações preocuparem-se com esse aspeto que muitas vezes consideram supérfluo. Para obter as séries longas de dados é preciso, por exemplo, montar uma infraestrutura de sensores em locais-chave capazes de os recolher. Instalar, manter e operar essa infraestrutura é dispendioso, exige organização, disciplina e conhecimento especializado. Quanto mais específicos e locais forem os dados de treino dos modelos IA, mais robustos serão os resultados. Outro constrangimento pode estar relacionado com a confiança, por um lado, quanto à propriedade e direitos sobre os dados, e por outro, quanto à fiabilidade dos modelos, sobretudo quando entram em ciclos de automação. Por exemplo, quando é criado um modelo preditivo do stress hídrico na planta e o usamos para automatizar a condução da rega. A demonstração dos benefícios tangíveis da IA através de casos de sucesso e a promoção da aprendizagem em rede ajudam a construir confiança e a incentivar a adoção. Finalmente, referir a conectividade ou a falta dela em meio rural! É surpreendente ler “estratégia digital nacional” metas como: “100% das áreas povoadas abrangidas por redes de alta velocidade 5G” ou “Portugal está, assim, bem posicionado, aproximando-se da meta de 100% das áreas povoadas cobertas por redes de alta velocidade 5G” quando a maioria da atividade agrícola se desenvolve longe das áreas povoadas. O setor agrícola não parece ser uma prioridade neste contexto.

“A IA é mais uma forte aliada da sustentabilidade”

A nível de formação e capacitação, os agricultores estão preparados para se adaptar?

O conhecimento deve ser sempre a base em qualquer atividade. Como referi, a recolha de séries longas de dados de qualidade requer conhecimento especializado por parte dos produtores. A IA tem, porém, algo de diferente em relação às restantes inovações. Mesmo entre estas, reparamos que em algumas delas, como a condução assistida ou automática por GPS, a adoção pelos produtores foi incomparavelmente mais rápida que outras (e.g. sistemas de informação integradores de dados espaciais como cartas de produtividade, NDVI, etc.). Isso aconteceu como resultado de um conjunto de atributos em que se destacam a facilidade de utilização e a rapidez com que se chega aos benefícios. Neste particular, as inovações baseadas em IA tendem a encurtar bastante a curva de aprendizagem quer seja porque automatizam processos podendo mesmo substituir o produtor em certas tarefas, quer porque tornam a interface muito próxima da sua comunicação natural. Torna-se, por exemplo, possível colocar questões em linguagem natural a uma base de dados de qualquer media – artigos, vídeos, sites, etc. – sobre uma determinada cultura, por exemplo ou equipamento, e obter respostas de um agente de extensão rural virtual. A adaptação da tecnologia ao produtor e não o inverso é algo que “queima” bastantes etapas no processo de adoção.

Que tipos de investimentos se exigem nesta transição tecnológica?

Face aos constrangimentos apontados, alguns exemplos de investimentos são a digitalização das empresas com forte incidência na sensorização de processos-chave, a construção de modelos hiper-customizados aos condicionalismos específicos de cada exploração/parcela, a conectividade e armazenamento de dados e a demonstração dos benefícios tangíveis da IA e na promoção da aprendizagem em rede.

Que mensagem deixa aos agricultores sobre a importância da IA para a sua atividade?

A IA não é nenhum ‘bicho de sete cabeças’ nem algo futurista. É uma ferramenta real, já presente em muitas soluções que usamos no dia a dia e ao alcance de qualquer um e que traz um amplo potencial de transformação na forma como se gerem as explorações. O seu grande valor está na grande capacidade de transformar dados em decisões, de antecipar problemas e libertar tempo para tarefas eventualmente mais estratégicas. Não substitui o produtor, multiplica a sua capacidade de decisão. É importante estar informado e envolvido em iniciativas de aprendizagem em rede. A IA é mais uma forte aliada da sustentabilidade.

Sugestões do potencial da IA

Ricardo Braga deixa ainda algumas dicas aos agricultores para comprovar o potencial da IA.

Sugestão n.º 1

Ir ao ChatGPT e perguntar: “Sou gestor agrícola de uma exploração de regadio com olival e amendoal na Vidigueira. Como posso usar a IA para melhorar a eficiência produtiva” (adaptar de acordo, quanto mais pormenor for dado, mais precisa será a resposta);

Sugestão n.º 2

Ir ao Notebooklm, adicionar fontes de informação técnica (vídeos, áudios, artigos, livros) e “conversar” com essas fontes;

Sugestão n.º 3

Explorar ferramentas como o Gemini (deep research) ou o Perplexity.

Nota: Entrevista publicada na edição n.º 142 da Revista Jovens Agricultores, inserida no Dossier Agricultura e Inteligência Artificial. A sua reprodução, parcial ou na íntegra, requer a autorização prévia da AJAP.