Em entrevista à Revista ‘Jovens Agricultores’, da AJAP, a Ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior fala dos desafios que se colocam ao progresso e à sociedade portuguesa, incluindo o setor agrícola. Elvira Fortunato aborda a importância do investimento público na formação dos jovens e, no caso da Agricultura, considera que só a modernização tecnológica e digital pode fomentar “a atratividade num contexto de profundas mudanças tecnológica, produtivas, económicas e ambientais”.
Começo esta conversa por uma declaração sua numa entrevista à RTP, em que dizia que “cada vez mais, hoje em dia, os decisores políticos têm por base a evidência, em muitos casos, a científica”. Considera que a Ciência e o Progresso têm ajudado os decisores a serem mais capazes e a tomarem decisões mais próximas das necessidades das pessoas?
Sem dúvida. O principal desígnio da ciência tem de ser ajudar os cidadãos a terem respostas para os desafios do quotidiano. A investigação científica, produzida dentro das instituições de ensino superior e dos centros de investigação, não pode, não deve e já não fica encerrada dentro das paredes dessas entidades. Os investigadores já produzem conhecimento e soluções, muitas delas disruptivas e inovadoras, visando ajudar os cidadãos nos seus problemas.
E, neste momento, que problemas são esses?
Em termos macro não podemos permanecer indiferentes às alterações climáticas que têm efeitos no ambiente, no clima e na agricultura, mas também na nossa saúde e na nossa alimentação. Não podemos ser indiferentes à transição digital que nos impele a construir soluções sustentáveis, que não causem mais danos no planeta, mas que, pelo contrário, promovam economias mais azuis e mais verdes. Não podemos manter-nos indiferentes a duas guerras que estão a ter e terão efeitos devastadores no planeta, em diversos territórios e nas pessoas que social e economicamente precisarão (já precisam) de políticas públicas mais humanas, mais justas, mais inclusivas, mais assentes em investigação científica. Dou-lhe um exemplo recente do que poderá ser uma ferramenta incontornável na criação de dados de base científica e que podem ser aproveitados por todos. Falo do supercomputador Deucalion que já inaugurámos. Os dados ali processados e guardados são uma oportunidade, não apenas para quem trabalha e investiga no âmbito da supercomputação, mas também para a restante comunidade científica cuja investigação exige crescentes necessidades de processamento digital de informação, cálculo intensivo, ciência de dados e inteligência artificial. O reforço estrutural da computação avançada é também essencial para o setor empresarial que vê assim elevada a sua capacidade de criação, otimização e aprovação de novos produtos e serviços e de desenvolvimento de cadeias de valor acrescentado. E acrescento, será também fundamental para a Administração Pública que, através de parcerias com instituições científicas, poderá aprofundar o processamento de dados públicos e estimular a produção de novos conhecimentos relevantes para os cidadãos, tendo por base a utilização de técnicas avançadas de inteligência artificial e ciência de dados. E ainda obter dados que visem auxiliar processos de decisão e de definição de políticas públicas, de forma a que estas decisões sejam cada vez mais baseadas num conhecimento profundo da realidade, e tecnicamente sustentadas em evidências cientificas.
“Melhores condições de estudo e de investigação”
Como olha para o futuro dos jovens (também os licenciados) em Portugal, sobretudo para as oportunidades profissionais (ou falta delas) que existem? O que mais a preocupa?
É impossível desempenhar as funções de Ministra na área governativa que tutelo, sem me preocupar com os jovens formados pelas nossas instituições de ensino superior e que investigam nas nossas entidades científicas. É prioritária para nós a criação das melhores condições de estudo e de investigação, pensando sempre que dessa forma estamos a preparar os nossos jovens para o mercado de trabalho. Seja o mercado de trabalho nacional, seja o mercado de trabalho fora de portas que permitirá aos nossos jovens contribuírem para a economia mundial e trazer para Portugal conhecimento e práticas que são mais-valias para o nosso desenvolvimento económico e social. A evolução do mercado de trabalho nas últimas duas décadas veio demonstrar a crescente relevância da formação superior para o exercício de atividades profissionais, mas, por outro lado, dificulta prever os trabalhos do futuro, num contexto de acelerada digitalização e globalização. A OCDE, no relatório Education at a Glance 2022, concluiu que os diplomados do Ensino Superior beneficiam de um prémio de empregabilidade em relação àqueles com qualificações inferiores. Por exemplo, em Portugal, no ano 2021, a taxa de emprego dos indivíduos dos 25-34 anos com formação superior encontrava-se 14 pontos percentuais acima daquela referente aos indivíduos que apenas possuíam formação inferior ao ensino secundário completo. Se compararmos este grupo de graduados com indivíduos, na mesma faixa etária, mas sem formação superior, os primeiros beneficiavam de um prémio de empregabilidade em relação aos segundos de 5 pontos percentuais. Além disso, em Portugal, em 2020, os diplomados na faixa etária 25-64 anos receberam remunerações que excederam em mais do dobro aquelas auferidas pelos indivíduos com qualificações inferiores ao ensino secundário completo.
Os avanços tecnológicos estão a mudar a natureza do trabalho e as habilitações exigidas, sendo hoje as denominadas competências transversais, tanto cognitivas quanto socio emocionais, que permitem aos trabalhadores adaptarem-se às tarefas, cada vez mais valorizadas e exigidas aos diplomados do ensino superior.
A revolução digital, a inteligência artificial e a automação estão a transformar profundamente o mercado trabalho tal como o conhecemos. Do mesmo modo, recentemente, o Tribunal de Contas, num relatório ‘Empregabilidade dos Ciclos de Estudos do Ensino Superior’ salientou a importância de “melhorar a informação e a monitorização da empregabilidade de modo a aperfeiçoar a definição da oferta, com equilíbrio entre a formação a disponibilizar e as necessidades da sociedade e do mercado de trabalho”. Tendo em conta o que afirmei, promovemos e estamos prestes a divulgar os resultados de um inquérito inédito em Portugal, denominado ‘Graduate Tracking Portugal’, que se trata de um questionário piloto aos diplomados do ensino superior, com o objetivo de mapear o impacto que a educação superior teve nas suas vidas, tanto a nível profissional como a nível das suas experiências enquanto cidadãos.
Pretendemos desta forma criar e implementar um exercício regular, completo, comparável e longitudinal de recolha de dados à escala nacional sobre os diplomados do ensino superior, de forma a integrar esses dados numa análise de caráter europeu.
Com este projeto pretende-se aferir quão satisfeitos os diplomados estão com os seus estudos, como viveram este período da sua formação no ensino superior, se tiveram experiências no estrangeiro e o que fizeram após o seu curso. Os resultados recolhidos no âmbito deste inquérito que será aplicado em Portugal, bem como noutros 16 países Europeus, poderão ser utilizados para comparar diferentes sistemas de ensino superior europeus e identificar maneiras de estes se tornarem melhores na preparação dos jovens para o mundo profissional, bem como na definição do seu papel na sociedade.
Apesar de a Agricultura não ser a sua tutela, e sendo a AJAP uma Associação que representa os Jovens (Agricultores), que visão tem do desenvolvimento tecnológico no Interior do País, onde é preciso combater a desertificação e promover melhores condições económicas às famílias e empresas?
Apesar de a Agricultura não ser a minha área governativa, a Ciência e o Ensino Superior têm estado fortemente articulados com o Ministério tutelado pela minha colega Maria do Céu Antunes. Dou-lhe um exemplo. No âmbito da reprogramação do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), ao abrigo do Programa ‘Impulso Mais Digital’, temos a decorrer a ‘Reforma e Modernização das Ciências Agrárias’, com uma dotação global de 15 milhões de euros. O objetivo é apoiar a modernização tecnológica e digital da formação na área das ciências agrárias e áreas relacionadas, como a agricultura, silvicultura, pescas e ciências veterinárias, fomentar a ligação às tecnologias (transição digital) e ambiente (transição verde), aumentar a atratividade e a relevância destas áreas de formação para futuros candidatos ao ensino superior e aumentar a atratividade e a relevância dos diplomados destas áreas de formação num contexto de profundas mudanças tecnológica, produtivas, económicas e ambientais.
E neste sentido estabelecemos metas globais a atingir até 2026. Entre elas:
- reformar 20 programas de licenciatura ou mestrado em ciências agrárias e áreas relacionadas, com a correspondente acreditação, através do reforço da:
componente digital e tecnológica, através da modernização e aquisição de equipamentos para instituições de ensino superior;
- internacionalização, incluindo a criação de cátedras convidadas;
- cooperação interinstitucional através da implementação da estratégia de internacionalização do ensino agrícola em consórcio;
- disseminar iniciativas de abertura das escolas agrárias aos estudantes do ensino secundário e respetivo acolhimento, com o objetivo de envolver 6 mil estudantes em iniciativas de divulgação e recrutamento (ex: Semanas abertas) tendo em vista aumentar a atratividade das escolas agrárias aos potenciais candidatos;
- formar 1000 profissionais do setor agrícola, que deverão concluir formação com componente digital e tecnológica através de microcredenciais, formação de ensino superior de curta duração ou mestrado profissionais.
E esta reforma engloba todas as Instituições de Ensino Superior, de todo o território nacional, porque para a equipa que lidero no Ministério e até para o próprio Governo, no seu todo, as oportunidades devem ser iguais para todas as regiões, sejam elas do interior ou do litoral, sejam elas mais rurais ou mais urbanas.
Criar incubadoras de base tecnológica, inovadoras e de valor acrescentado pode ser, na sua opinião, uma aposta futura, apesar de já haver alguns casos de sucesso conhecidos? Que impulsos tem o Governo, nomeadamente o seu Ministério, nesta matéria?
Existem neste momento diversos bons exemplos de entidades e consórcios de base tecnológica, inovadores e de valor acrescentado, como refere, na área das ciências agrárias, que contam com o apoio do Governo e de outras entidades, entre elas a Comissão Europeia por exemplo. Além de que o Ministério mantém um conjunto de apoios neste domínio do conhecimento. Desde logo, através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), existe um histórico considerável de atribuição de bolsas de doutoramento (BD). Neste momento registamos cerca de 411 bolsas com plano de investigação a decorrer, representando cerca de 6% do número total de BD ativas financiadas diretamente pela FCT. A FCT mantém igualmente no âmbito da iniciativa Ciência LP, ativo um protocolo de colaboração com o Consórcio das Escolas de Ciências Agrárias (CECA), visando a atribuição de bolsas de doutoramento na área das ciências agrárias, a alunos oriundos de países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP), com plano de trabalhos nas vertentes da agricultura, floresta, recursos biológicos e ambientais, biodiversidade e serviços dos ecossistemas. Até à data, foram contratualizadas, ao abrigo deste protocolo, 37 bolsas de doutoramento.
Como sabe o Ministério que tutelo está a, progressivamente, tornar a carreira científica mais estável. Passámos de uma realidade de financiamento da investigação científica apenas através de bolsas, para a generalização da contratação a termo através do denominado Programa de Estímulo ao Emprego Científico, e apoiaremos um conjunto considerável de contratos por tempo indeterminado. Mas no âmbito do Programa de Estímulo ao Emprego Científico, existem atualmente 111 contratos em execução nesta área do conhecimento, os quais envolvem um investimento global de cerca de 33 M€, distribuídos por 6 anos, duração total dos contratos. No que diz respeito a infraestruturas científicas nacionais, existe um conjunto relevante de laboratórios cujo core é a concretização de atividades de Investigação e Desenvolvimento (I&D) no domínio das ciências agrárias. No último exercício de avaliação das Unidades de I&D, a FCT reconheceu para financiamento 16 centros de investigação na área das ciências agrárias, os quais se encontram a ser financiados. Ao mesmo tempo, a FCT financia cinco Laboratórios Associados nesta área do conhecimento. E destaco ainda a existência de cinco Laboratórios Colaborativos (CoLAB) a funcionar na área da Agri-Food, financiados pela FCT em conjunto com a Agência Nacional de Inovação (ANI). Em relação aos CoLAB, estamos a falar de centros de investigação que demonstram a importância da ciência no desenvolvimento da economia e que comprova igualmente que o Governo permanece no caminho certo apoiando a investigação científica e tecnológica, promovendo o fortalecimento da sua relação com o setor empresarial e industrial. É crucial dinamizar a ciência e tecnologia desenvolvida pelo nosso sistema científico e tecnológico e o conhecimento produzido nas nossas instituições de ensino superior. É dessa dinamização que depende, cada vez mais, a dinamização da economia. Mas para concretizar o que acabo de afirmar, é fundamental estimular e reforçar as sinergias entre a comunidade académica e científica com as empresas e a indústria, daí a importância dos CoLAB. Os CoLAB permitem criar, direta e indiretamente, emprego qualificado em Portugal em estreita associação com a valorização social e económica do conhecimento.
Já que refiro a convergência que desejamos com a Europa, permita-me destacar a Missão Solo desenvolvida no âmbito do Horizonte Europa. Como sabe a Comissão Europeia estabeleceu um conjunto de Missões para encontrar soluções concretas para alguns dos nossos maiores desafios enquanto cidadão europeus, com resultados tangíveis até 2030. A ideia é definir uma estratégia que una a investigação e a inovação com novas formas de governação e colaboração envolvendo os cidadãos.
Ora a Missão Solo pretende estabelecer uma centena de instituições como laboratórios vivos, quintas ou parques nos quais será possível desenvolver investigação através da criação de condições reais, do estabelecimento de relações entre os cientistas e as explorações agrícolas comerciais ou florestais, entre outros, e onde será também possível mostrar boas práticas e promover a aprendizagem entre pares.
Ainda no contexto europeu temos a decorrer o Plano de Recuperação e Resiliência que tem permitido um investimento significativo em consórcios entre o sistema científico e tecnológico e a indústria e as empresas, contribuindo para o aumento da competitividade e resiliência da economia nacional, com base em atividades de Investigação e Desenvolvimento, inovação, diversificação, e especialização da estrutura produtiva. Refiro-me às Agendas Mobilizadoras, nas quais existem duas dedicadas ao agroalimentar e uma ao setor da floresta. Estamos a falar de um investimento de quase 400 milhões de euros que permitirá impulsionar novas cadeias de valor apoiadas pela investigação e inovação no contexto das ciências agrárias.
O que temos também registado, e que considero ser um bom indicador do sucesso das entidades na área das ciências agrárias, é o número relevante de pedidos de entidades do setor agroalimentar junto do SIFIDE, o sistema de incentivos fiscais para estimular a competitividade das empresas, apoiando o seu esforço em I&D através da dedução à coleta do IRC de uma percentagem das respetivas despesas de I&D (na parte não comparticipada a fundo perdido pelo Estado ou por Fundos Europeus).
Em 2021, foram apresentados pedidos por 399 entidades do setor agroalimentar, das quais 277 PME e 122 Não PME. Destas 399 entidades, 338 entidades viram o processo concluído, e foi apurado um Investimento de 71 M€ (despesa em I&D), tendo sido atribuído um crédito fiscal total de 42M€, o que representa um crédito médio por entidade de 124,5 K€. Tudo quanto referi, demonstra bem como Portugal e a Europa não são indiferentes à importância da Agricultura e de outras áreas intimamente relacionadas com ela. A ciência e a inovação estão ao serviço destes setores porque todos reconhecemos a sua importância para garantir qualidade de vida e saúde às populações.
Uma das figuras impulsionadas pela AJAP nos últimos anos foi o JER – Jovem Empresário Rural, que conta com um Estatuto próprio, desde 2019. Esta figura pretende potenciar o empreendedorismo no Mundo Rural, a fixação de jovens nestes territórios e a criação de novas empresas. Como olha para uma figura como o JER a nível de inovação, económico, tecnológico e social?
Com bastante interesse e expectativa nos resultados que vão ser obtidos, e que, acredito, serão muito positivos. Sabe, no Ministério estamos muito atentos às regiões denominadas de baixa densidade. E essa preocupação esteve presente em duas grandes revisões que fizemos. Desde logo na revisão das diversas vias de ingresso ao ensino superior que tem conta as tendências demográficas adversas. Daí termos estimulado a diferenciação institucional, estimulamos a diversificação das vias e a busca de candidatos que possam suprir a previsível quebra de candidatos e promovermos os equilíbrios territoriais e sistémicos ao nível da oferta formativa.
Aliás, no Concurso Nacional de Acesso deste ano, o número de colocados em instituições localizadas em regiões com menor procura e menor pressão demográfica aumentou 0,2% (traduz-se em 13.107 estudantes colocados), com diversas instituições de ensino superior (IES) do interior a aumentar o número de colocados face ao ano anterior (Politécnicos de Beja, Castelo Branco, Guarda, Santarém, Viana do Castelo, e Universidades de Évora, Trás-os-Montes e Alto Douro e Madeira). Apesar de termos registado uma ligeira redução de candidatos, as IES do interior até aumentaram um pouco o número de colocados, o que demonstra que a desertificação das instituições do interior não é uma inevitabilidade. Também no novo modelo de financiamento do ensino superior, as regiões de baixa densidade são levadas em consideração, daí a criação de contratos-programa de desenvolvimento, para os quais apenas são elegíveis instituições localizadas em regiões de baixa densidade demográfica e ultraperiférica, visando fortalecer o papel das instituições de ensino superior no desenvolvimento dos territórios onde estão inseridas. Esta contratualização corresponderá a financiamento adicional ao da fórmula e mobilizará fundos adicionais aos do Ministério, nomeadamente atendendo ao papel das IES para a coesão e desenvolvimento regionais. Também de forma a valorizar as instituições do interior do país reforçámos o Programa +Superior que visa incentivar e apoiar a frequência do ensino superior em regiões do país com menor procura e menor pressão demográfica por estudantes economicamente carenciados que residem habitualmente noutras regiões. Esta estratégia que estamos a seguir, vai ao encontro dos objetivos previstos na figura do Jovem Empresário Rural, porque pretendemos igualmente fixar estudantes nas regiões de baixa densidade, que, mais tarde, serão trabalhadores ativos e investidores nessas regiões.
Nota: Entrevista publicada na edição n.º 136 da Revista Jovens Agricultores da AJAP. A sua reprodução, parcial ou na íntegra, está sujeita a autorização da AJAP.