“O setor agrícola português está perante uma oportunidade única de se reinventar e revitalizar”

Em criança já ajudava o pai na colheita. Nascido numa família ligada à Agricultura, formou-se em Agronomia, e aprofundou conhecimento em vários países, desde o Chile, Inglaterra, Itália, Espanha, Israel e EUA. Hoje é um dos rostos da Herdade Vale da Rosa, no Alentejo, conhecida pelo sucesso da uva de mesa, e que alargou o negócio ao olival e ao amendoal. Henrique Silvestre Ferreira, Jovem Agricultor, 35 anos, é, desde 29 de abril, o novo Presidente da AJAP. Nesta entrevista, analisa o estado do setor e elege as alterações climáticas como o grande desafio do presente.

Como chega ao setor agrícola?

A minha ligação à viticultura começa desde pequeno. Faço parte da quinta geração da família Silvestre Ferreira, que se dedica, há várias décadas, à produção de uvas de mesa e, em criança, já ajudava o meu pai na colheita. A decisão de seguir na agricultura acabou por surgir de forma muito natural e, após concluir o ensino básico no Colégio Sagrado Coração de Maria, em Lisboa, optei pela área de ciências e acabei por entrar em Agronomia. Escolhi a Universidade de Évora pela proximidade com a empresa da minha família, o que me permitia conciliar os estudos com o trabalho na Herdade Vale da Rosa. Este foi um período de enorme aprendizagem, em que procurei igualmente aprofundar o meu conhecimento no setor agrícola através do contacto com outros mercados. Nas férias, fiz estágios fora do País. Passei alguns meses no Chile, onde tive formação em controlo de qualidade, embalagens e pós-colheita numa empresa de exportação de frutas. Em Inglaterra, estagiei na Marks & Spencer, nosso cliente desde 1972, onde tive oportunidade de desenvolver competências de comercialização, assim como novas técnicas de controlo de qualidade das uvas. Estive ainda em Itália e Espanha, onde aprendi novas técnicas de plantação de uva de mesa sem grainha e, em Israel, conheci as técnicas mais avançadas de irrigação. Na Califórnia, EUA, tive também contacto com empresas que desenvolvem novas variedades de uvas. As viagens para outros países foram fundamentais para o meu crescimento. Apesar de me custar estar longe da família e amigos, se tivesse oportunidade, voltaria a repetir. A formação e o conhecimento são cruciais para preparar o futuro. No último ano da universidade, decidi estudar na Universidade Politécnica de Madrid. Concluído o curso, em 2015, comecei a trabalhar naVale da Rosa, com responsabilidades sobre o mercado de exportação. Embora tenha sido uma experiência enriquecedora, percebi que minha paixão está no campo. É aí que nasce o desejo de iniciar meu próprio projeto. Hoje, além da uva sem grainha, com mais de 20 hectares de vinha, dedico-me também ao olival e ao amendoal, que têm permitido alargar e consolidar o projeto.

Falando da Herdade Vale da Rosa, como começa esta história empresarial/familiar de sucesso? Como se posiciona hoje no mercado?

A minha família está ligada à produção de uva há mais de um século, desde os tempos da antiga Herdade do Pinheiro. Após a ocupação da propriedade no rescaldo do 25 de abril, mudaram-se para o Brasil, onde continuaram a dedicar-se ao cultivo de uva, na região de Maringá. É aí que o meu pai, António Silvestre Ferreira, tem o primeiro contacto com a produção de uva sem grainha. Quando regressou a Portugal, em 1999, decidiu trazer o know-how que adquiriu no Brasil para o mercado nacional e tornou-se um pioneiro no panorama agrícola português ao iniciar o cultivo da uva sem grainha na rebatizada Herdade Vale da Rosa, nome inspirado na pequena horta onde brincava em criança. E assim nasce aquela que hoje conhecemos como a primeira marca nacional de uva sem grainha.

Gostava que fizesse um resumo histórico da empresa.

A empresa foi fundada em 2000, dando início ao cultivo de variedades de uva sem grainha em Portugal em 2005, sendo responsável pela sua introdução no mercado português. Um ano depois já exportava as primeiras uvas para Inglaterra. Com mais de duas décadas de compromisso com a produção de uva de elevada qualidade, Vale da Rosa é atualmente um dos maiores e mais reconhecidos produtores nacionais de uva de mesa, com quase 300 hectares de vinha, onde cultiva um total de 26 variedades e de onde saem anualmente cerca de 4.500 toneladas de uva, com um foco crescente na exportação. Tem vindo também a apostar numa crescente diversificação do negócio, que vai hoje muito além da comercialização de uva sem grainha, disponibilizando toda uma gama de produtos, da Uva Passa ao Vinagre, passando pelas Amêndoas com uvas passas do Vale da Rosa. Tem expandido também a sua atividade para outras áreas, como o turismo, oferecendo visitas guiadas à Herdade, onde é possível conhecer o processo de cultivo e colheita, bem como degustar produtos locais. As perspetivas passam por manter essa rota de diversificação e expansão dos mercados de exportação, fazendo chegar as uvas e outros produtos Vale da Rosa a cada vez mais geografias. 

Sendo um Jovem Agricultor e Presidente da AJAP, como vê atualmente o setor em Portugal? Que desafios e entraves destaca?

O setor agrícola em Portugal, hoje, apresenta-se como um campo de dualidades: por um lado, carregamos um riquíssimo legado de tradição e conhecimento, por outro, enfrentamos uma necessidade imperativa de inovação e adaptação às novas realidades climáticas, económicas, sociais e o abandono dos territórios rurais. Entre os desafios mais prementes, destacaria a questão das alterações climáticas e a questão do abandono das zonais rurais do País. Relativamente às alterações climáticas, não só exacerbam a frequência e severidade de fenómenos extremos, como secas e ondas de calor, mas também influenciam diretamente a sustentabilidade dos recursos hídricos, cruciais para a agricultura. Temos, ou melhor, o Governo tem de rever o nosso Plano Nacional de Regadio, só retemos 20% da água que cai no território, por isso, é imperativo aumentar o armazenamento de água por forma a evitar que a grande maioria continue a escorrer para o mar. A necessidade de adotar práticas agrícolas mais sustentáveis, resilientes e cada vez mais eficientes no consumo de água são fundamentais e urgentes, como o são a criação de medidas eficazes de fixação e atração de novos investidores e Jovens Empresários (agrícolas e rurais) nos territórios rurais. Por outro lado, enfrentamos desafios estruturais relacionados com o acesso à terra, especialmente para novos agricultores (uma vez que se verifica a concentração de terras e a especulação imobiliária), o mesmo em relação ao acesso ao crédito e à falta de acompanhamento técnico aos Jovens Agricultores. Em nosso entender, juntamente com os mercados, são os principais entraves a uma renovação geracional que se exige na agricultura. Noutro quadrante, a burocracia e a complexidade dos processos para acesso a fundos e apoios nacionais e europeus representam outro entrave significativo. Embora existam numerosos programas de apoio, a sua acessibilidade é, muitas vezes, limitada pela burocracia e pela falta de informação clara e acessível. Mas eu tenho 35 anos. Mais do que desafios e entraves, vejo oportunidades. É importante salientar que, apesar destes desafios, o setor agrícola português está também perante uma oportunidade única de se reinventar e de se posicionar como líder em práticas agrícolas sustentáveis e inovadoras. A aposta na tecnologia e na digitalização, por exemplo, pode não só aumentar a eficiência e a produtividade, mas também ajudar a mitigar o impacto ambiental das nossas práticas agrícolas. Adicionalmente, a crescente valorização dos produtos locais e de qualidade, bem como o interesse por práticas agrícolas sustentáveis, abrem novos mercados e oportunidades de negócio para os agricultores portugueses. Estamos numa posição única para liderar pelo exemplo, mostrando que é possível aliar tradição e inovação, sustentabilidade e produtividade. Por isso, se é verdade que o setor agrícola em Portugal enfrenta desafios consideráveis, não é menos verdade que se encontra perante oportunidades significativas.

Como sabe, na última década, a AJAP tem defendido a figura do Jovem Empresário Rural (JER). Foi conseguida a sua publicação em Decreto-Lei (9/2019, de 18 de janeiro) e surgiram as primeiras medidas de apoio, contudo, ainda muito incipientes. Nesta sua Presidência, que destaque tenciona dar a esta importante figura?

O JER é uma figura muito importante para a AJAP, mas acima de tudo, para o desenvolvimento do País, pois os territórios rurais, incluindo os de Baixa Densidade, ocupam mais de 80% de Portugal Continental. Trata-se de uma figura que promove o empreendedorismo no mundo rural e que pretende instalar e fixar jovens nestas zonas, de preferência com formação média/superior e em iniciativas empresariais, ideias de negócio e startups associadas a vários setores da atividade económica. Atividades complementares da Agricultura, como o turismo, desportos da natureza, caça, pesca, bem como a preservação e conservação da natureza e dos ecossistemas são áreas importantes para o futuro e podem assegurar rentabilidade. A par destas, outras vão surgir pela via da digitalização, inovação e novas tecnologias. A grande vantagem, para estes novos empreendedores jovens, é o usufruto da natureza, da qualidade de vida associada a territórios, que têm de ser valorizados pelas suas caraterísticas tradicionais, pelas suas vivências e pela cultura. Desta forma, diversificamos a base económica regional, com a criação de novas empresas e valorizamos os recursos endógenos com a exploração de atividades económicas inovadoras e ambientalmente sustentáveis. É urgente intervir de forma célere, rápida e sem burocracias. As alterações climatéricas vêm acelerando a desertificação destes territórios e o êxodo rural têm-se acentuado pela ausência de iniciativas capazes de inverter esta realidade que não pode ser fatalidade. A diminuição da atividade agrícola, a falta de zelo nas florestas e medidas para este setor culminam, muitas vezes, em “terra queimada”, flagelo bem conhecido entre nós. Urge intervir agora porque daqui a umas (poucas) décadas, com praticamente tudo perdido, é muito mais difícil intervir e muito mais caro fazer o que quer que seja. Esta figura JER nasce no Ministério da Agricultura, mas entronca na Coesão Territorial, Economia e Juventude. Apelamos, portanto, a que o Governo tenha em atenção esta realidade indesmentível e atue através da criação de uma taskforce assente nestes quatro Ministérios por forma a que ainda possamos ir a tempo de equilibrar o desenvolvimento do País e salvar mais de 80% do seu território. Estamos certos de que só uma lógica interministerial, que traduz complementaridade, sem sobreposição entre si, pode unir e desenvolver o território, bem como o seu espaço em matéria de operacionalização com objetivos comuns. A figura do JER e dos Jovens Agricultores são imprescindíveis no desenvolvimento destes territórios e acreditamos que serão decisivas para combater a desertificação de muitas regiões do País em quase declínio absoluto.

Papel fundamental da AJAP

Quanto aos Jovens Agricultores, que impulsos vê atualmente quando abraçam o setor?

Os Jovens Agricultores estão a abraçar o setor agrícola impulsionados por uma combinação de fatores, que refletem não só uma mudança nas aspirações e valores das novas gerações, mas também reconhecem as oportunidades emergentes dentro deste setor tradicional. Primeiro, existe um crescente reconhecimento da importância da agricultura para a sustentabilidade ambiental e para a segurança alimentar. Os Jovens Agricultores estão particularmente sensibilizados para as questões do desenvolvimento sustentável e veem na agricultura uma oportunidade de contribuir positivamente para o combate às alterações climáticas, através da adoção de práticas agrícolas mais ecológicas e sustentáveis. Depois, a valorização dos produtos locais, orgânicos e de qualidade tem crescido significativamente, impulsionada por uma maior consciência dos consumidores sobre a origem e o impacto ambiental dos alimentos que consomem. Esta tendência tem aberto novas oportunidades de mercado para os Jovens Agricultores, que muitas vezes optam por modelos de negócio inovadores, como a agricultura biológica, a permacultura ou o sistema CSA (Community Supported Agriculture), que fortalecem a ligação entre produtores e consumidores. A tecnologia e a inovação representam outro fator de atração para os jovens no setor. A aplicação de novas tecnologias, como a agricultura de precisão, a automação, a digitalização da gestão agrícola e o uso de drones para monitorização de culturas, abre perspetivas entusiasmantes para tornar a agricultura mais eficiente, produtiva e menos penosa em termos de trabalho físico. O apoio institucional e as políticas de incentivo à entrada de jovens no setor agrícola, como os programas de apoio financeiro, formação especializada e acesso facilitado a terras, são também cruciais, embora necessitem de maior ambição no número de instalações a atingir, com apoio diferenciado, conforme as regiões onde o Jovem Agricultor apresenta o seu projeto, e com um sistema de acompanhamento técnico eficaz, uma vez que desde a nossa adesão à UE, em 1986, nunca existiu.

O trabalho da AJAP tem sido essencial nesta matéria. Na sua opinião, o que gostaria de sublinhar?

A AJAP tem desempenhado um papel fundamental no dinamismo e na sustentabilidade do setor agrícola, especialmente na capacitação e no incentivo à nova geração de agricultores. Gostaria de sublinhar vários aspetos do trabalho desenvolvido pela Associação que considero essenciais. Primeiro, a capacitação e a formação. A Associação tem-se destacado ao fornecer acesso a formação técnica crucial para o sucesso dos novos projetos agrícolas. Esta formação abrange desde as práticas agronómicas mais tradicionais até às mais recentes inovações tecnológicas e sustentáveis, assegurando que os Jovens Agricultores estejam bem equipados para enfrentar os desafios modernos do setor. Em segundo lugar, a representação e a defesa de interesses. A Associação tem sido uma voz ativa e influente na representação dos interesses dos Jovens Agricultores junto de entidades governamentais e instituições europeias. Este trabalho é fundamental para assegurar que as políticas agrícolas e os programas de apoio sejam desenhados de maneira a contemplar as necessidades e os desafios específicos enfrentados pelos jovens no setor. Terceiro, a promoção da inovação e da sustentabilidade, onde a Associação tem sido pioneira na divulgação de práticas agrícolas sustentáveis e inovadoras entre os seus membros, encorajando a adoção de métodos que, não só aumentam a produtividade e a eficiência, mas também protegem o ambiente e promovem a biodiversidade. Sublinho ainda o papel da Associação no fomento do networking e da cooperação através da organização de eventos, feiras e encontros, facilitando o intercâmbio de experiências, conhecimentos e melhores práticas entre os Jovens Agricultores. Esta rede de apoio mútuo é vital para superar os desafios comuns e para explorar novas oportunidades de negócio, promovendo uma cultura de cooperação e comunidade. Por último, entendo que esta defesa conjunta, muito mais vincada nos Jovens Agricultores, mas também nos Jovens Empresários Rurais é de extrema importância para a revitalização e dinamização dos nossos territórios, cada vez mais desertificados, sem Jovens, sem crianças e sem esperança. Há que estimular, o Governo tem de ser muito mais ativo nestas matérias. Há um desejo de retorno às raízes na busca por “vidas” mais equilibradas em contacto com a natureza, aspiração legítima de futuros jovens empresários (agrícolas ou rurais) de serem agentes dinamizadores destes territórios quer pela via de uma agricultura moderna, inovadora e tecnológica, bem como pelas oportunidades que a digitalização possibilita ao mundo empresarial e dos negócios no Turismo, nas atividades de lazer, proteção da Natureza e dos Ecossistemas.

Nota: entrevista publicada na edição n.º 138 da Revista ‘Jovens Agricultores’, da AJAP. A sua reprodução, parcial ou na íntegra, requer autorização prévia da AJAP.