Estará a agricultura portuguesa a atravessar um problema de sustentabilidade? Talvez a pergunta esteja mal colocada. Porque se trata de uma travessia. Uma travessia entre o passado e um futuro que exige novas ferramentas. E como toda a travessia, há incerteza, há oportunidades e há também o risco de se ficar pelo caminho.

Texto: João Mendes | Investigador no CEDRI – Centro de Investigação em Digitalização e Robótica Inteligente, IPB
O setor agrícola em Portugal está, sem dúvida, a mudar de cenário. Se por um lado assistimos a uma crescente automatização das grandes produções, que privilegiam a eficiência e a escala, por outro lado, resistem, e com razão, milhares de pequenos e médios produtores, fiéis aos ensinamentos familiares que atravessaram gerações.
Ambos enfrentam hoje as mesmas pressões: sustentabilidade, falta de mão de obra e alterações climáticas. E é nesse contexto que o setor procura novos aliados. É aí que a Inteligência Artificial (IA) entra, não como uma ideia longínqua, nem como um luxo reservado a elites agrícolas, mas como uma oportunidade concreta por explorar. Em Portugal, o seu potencial é imenso: desde a monitorização de culturas usando sensores de solo, até à previsão de pragas com base em padrões climáticos, passando pela automação de rega e colheita, é possível produzir mais com menos.
A IA, longe de ser apenas moda ou capricho, é hoje uma ferramenta concreta ao serviço do agricultor. Já não falamos de futuros hipotéticos: algoritmos de visão computacional detetam doenças precocemente e modelam produtividades, sistemas de machine learning otimizam o uso da água e dos fertilizantes. No quotidiano agrícola, a IA pode traduzir-se em coisas tão simples quanto eficazes: um alerta por SMS quando se aproxima uma praga, um sistema que calcula diariamente a quantidade exata de água necessária em cada talhão, ou uma ferramenta que sugere o melhor momento para aplicar fertilizante com base em
dados meteorológicos. É na utilidade prática que reside o valor da tecnologia.
Em algumas explorações portuguesas já se aplicam sistemas de monitorização automática da humidade do solo que ajustam a rega em tempo real, reduzindo consumos até 30%. Em vinhas e olivais, há produtores a utilizar drones e modelos de classificação de imagem para detetar doenças antes de serem visíveis a olho nu. Outras soluções, como aplicações móveis com recomendações de tratamento baseadas em dados meteorológicos e históricos da cultura, estão a chegar às mãos dos agricultores.
Contudo, o salto do potencial para a prática revela-se desigual. A dimensão média das explorações agrícolas, muitas familiares e com acesso limitado a capital, conhecimento técnico ou redes de inovação, é um dos grandes obstáculos. Para muitos Jovens Agricultores, a IA ainda é associada à universidade, a centros de investigação, a explorações maiores e distantes, não à sua realidade quotidiana. Mas essa perceção precisa, pouco a pouco, de ser transformada.
A terra, que nos ensina paciência, também nos ensina que toda a grande colheita começa muito antes da primeira folha. E assim também deve ser com a IA na agricultura portuguesa: um trabalho de sementeira, de cuidados invisíveis, de escolhas que hoje parecem pequenas, mas que amanhã serão decisivas.
Contudo, como investigador na área, é impossível ignorar os desafios que persistem. A maioria dos algoritmos necessita de grandes volumes de dados de qualidade, nem sempre disponíveis nas explorações tradicionais. Além disso, a integração destas tecnologias exige uma infraestrutura mínima, nem sempre ao alcance do produtor médio. E mesmo quando a tecnologia está instalada, há a barreira maior: o conhecimento humano necessário para interpretar os dados e agir em conformidade.
Portugal está entre o saber tradicional e a inovação tecnológica. Para fazer esta transição com equilíbrio, é necessária uma simbiose verdadeira: a academia a produzir conhecimento útil, as empresas a fazer a ponte para o terreno e os agricultores a abrirem o espírito para aprender e adaptar. O futuro não virá por si: é preciso imaginá-lo e construí-lo. E construir este futuro implica também reconhecer que a IA não é uma ameaça à sabedoria ancestral do campo, é antes um novo instrumento colocado nas mãos de quem sempre soube ouvir o rumor do vento e ler os sinais da terra.
Claro, a resistência existe, e é natural que exista. Quem trabalha a terra sabe que nem toda a novidade germina. Mas também sabe que sem coragem, não há colheita. Para que este potencial não se esgote em boas intenções, o setor precisa de apoio técnico, formação e políticas inclusivas. Só assim a IA se tornará, verdadeiramente, uma ferramenta do dia a dia agrícola, tão essencial quanto a enxada.
Nota: Artigo publicado na edição n.º 142 da Revista Jovens Agricultores, inserido no Dossier Agricultura e Inteligência Artificial. A sua reprodução, parcial ou na íntegra, requer a autorização prévia da AJAP.