“O uso de renováveis é o caminho certo para a transição energética dos aproveitamentos hidroagrícolas”
A ministra da Agricultura e Alimentação refere, nesta entrevista à AJAP, centrada na Transição Energética na Agricultura, que “conciliar o uso eficiente da água com a sustentabilidade energética é um dos desafios que se coloca a todos os gestores dos sistemas de água para rega, agricultores e agroindústrias”. Maria do Céu Antunes não tem dúvidas: o uso de renováveis, como painéis fotovoltaicos, “é o caminho certo, para não dizer o único, para a transição energética dos aproveitamentos hidroagrícolas e para a sustentabilidade que todos queremos e da qual todos precisamos”. Numa conversa profunda sobre a descarbonização da Agricultura, a ministra aborda ainda a importância do uso racional da água e o combate às alterações climáticas, temas prioritários para a sustentabilidade do setor e das explorações agrícolas.
As alterações climáticas, os custos de energia e a necessidade de tornar a Agricultura mais eficiente e sustentável colocaram na agenda a urgência do tema da eficiência energética. Que caminho tem trilhado o setor agrícola nacional nesta matéria?
A eficiência energética é apenas uma das variáveis da equação com que somos confrontados quando falamos de alterações climáticas. Há hoje, na consciência coletiva, uma certeza: a agricultura e as pescas são alicerces da nossa economia, mas também da nossa sobrevivência e bem-estar. A produção de alimentos é a sua missão. E sabemos bem que o aumento demográfico a nível mundial vai ser brutal até 2050, sem podermos esquecer que, respondendo aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, temos de produzir mais com menos. E, para produzir mais e melhor, com menos recursos, é essencial sermos eficientes e cumprirmos, mais cedo que tarde, a transição energética.
É um desafio estratégico que queremos vencer e, para isso, há, felizmente, já muito trabalho desenvolvido, com respostas múltiplas, que vão da instalação de painéis fotovoltaicos à atualização de maquinaria agrícola, passando, por exemplo, pela modernização de aproveitamentos hidroagrícolas públicos. Uma transição que se tornou ainda mais urgente com os efeitos da guerra e uma inflação galopante, que afetou, de sobremaneira, o custo da energia. Para se ter uma ideia do que estamos a falar: temos, nos diversos avisos abertos que abrimos, mais de 5500 projetos submetidos para instalação de painéis nas explorações agrícolas e agroindústrias, sem esquecer que ainda houve 28 projetos em regadios coletivos. De um total de 92 milhões de euros disponibilizados, 43 milhões já têm reflexos no terreno e contamos, até ao final do ano, ter a verba esgotada e, até 2025, concretizada.
Com este mesmo espírito, desbloqueámos o processo de instalação do Parque Fotovoltaico de Alqueva, que se assume emblemático pelo uso da tecnologia flutuante. Um investimento na ordem dos 45 milhões de euros, que permitirá reduzir em 50% as compras à rede. E sabemos bem que a eletricidade é a componente de custos mais elevada na reserva e disponibilização de água aos agricultores. Ou seja, este investimento também traz competitividade aos sistemas agrícolas da região e promove a manutenção da diversificação do território. Permitam-me ainda dar-vos outro exemplo, que é, ao mesmo tempo, um reconhecimento da coragem e do arrojo dos dirigentes da Associação de Regantes do Roxo e da Federação Nacional de Regantes de Portugal (FENAREG). Refiro-me à criação da 1.ª Comunidade de Energia Renovável no regadio em Portugal, um projeto piloto cujos resultados, em que tenho bastante confiança, queremos replicar, tanto quanto possível, nos sistemas de regadio público.
São, pois, múltiplas as respostas que temos construído, com o setor, e que constituem um enorme contributo para descarbonizar a atividade agrícola, essencialmente por via da redução da utilização de combustíveis fósseis. Claro que a transição energética é, como já referi, apenas uma das variáveis da equação, mas estou certa de que teremos a oportunidade de falar sobre outras ao longo desta entrevista.
A ‘Agenda de Inovação para a Agricultura 20 | 30 – Terra Futura’ e o PRR – Plano de Recuperação e Resiliência são dois exemplos de instrumentos/políticas ao dispor dos agricultores para fazerem a transição energética necessária? Que apoios e ferramentas estão, neste sentido, ao dispor do mercado? E que verbas disponíveis existem nesta matéria?
Deixem-me dar um exemplo, do que vos dizia há pouco sobre as variáveis da equação de adaptação e mitigação dos efeitos das alterações climáticas, um exemplo que coincide com um dos 63 projetos que contratualizámos, para a Transição Agroenergética, com mais de 21 milhões de euros de apoio: o Tools4AgriEnergy – Ferramentas para operacionalização de Comunidades de Energia Renovável/Autoconsumo Coletivo no Agroalimentar é um projeto coordenado pelo Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) e que envolve uma parceria com a Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA), a Federação Nacional de Regantes de Portugal (FENAREG), o Centro Operativo e de Tecnologia de Regadio (COTR) e o Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV). Um projeto que esperamos que possa complementar a já referida 1.ª Comunidade de Energia Renovável no regadio em Portugal.
A Agenda de Inovação para a Agricultura 20 | 30 – Terra Futura é um plano estratégico para a década, que agrega os principais instrumentos para o setor, entre os quais constam o Plano Estratégico para a Política Agrícola Comum (PEPAC23.27) e o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Aliás, o PRR que financia a Terra Futura em 93 milhões de euros, registando-se já uma taxa de compromisso de 101%.
Energia limpa
O elevado consumo de energia na atividade agrícola é uma das questões que mais preocupa os produtores. Sabemos que há fatores de mercado incontroláveis, há a conjuntura económica e a guerra na Ucrânia que veio dificultar o acesso à energia a preços justos. Qual tem sido o contributo do Estado (e da tutela) na minimização deste problema?
Já fomos referindo o trabalho que está a ser desenvolvido e implementado tendo em vista reduzir a dependência de energia fóssil, incentivar os produtores e as empresas agrícolas a produzir a sua própria energia limpa e melhorar os níveis de eficiência do uso energético. E, quando pensamos na sustentabilidade energética futura, as energias renováveis constituem a medida mais eficaz, que terá um efeito efetivo em termos de política energética, quer para a transição ambiental, quer para estabilização dos preços da energia.
Mas insisto, a resposta é múltipla, estrutural e conjuntural. Posso dar mais exemplos de investimentos financiadas pelo PRR, como é o caso da promoção de soluções integradas de tratamento dos efluentes agropecuários, associadas à recuperação de biogás para produção de energia. E posso falar, também, do fomento da agricultura de precisão, mediante o recurso à digitalização e à tecnologia para a gestão eficiente dos recursos – algo que já apoiámos através do PDR 2020 e que iremos continuar a incentivar através do PEPAC.
A variação nos custos da energia tem efeitos muitos significativos nos custos da produção, agravados por outros fatores decorrentes das sucessivas crises que temos vindo a enfrentar: pandemia, seca, fenómenos climáticos extremos, inflação… O governo tem trabalhado intensamente, sempre em diálogo com o setor, na disponibilização de respostas imediatas para estabilizar o rendimento dos agricultores e manter a atividade das empresas do setor. Foram mais de 300 milhões de euros disponibilizados, e pagos, aos agricultores, através da reserva de crise, em isenções de IVA em fertilizantes e produtos para alimentação animal, mediante medidas como a eletricidade verde, a compensação dos custos com o gasóleo colorido, a medida 22 do FEADER e o Pacto para a redução e estabilização de preços dos bens alimentares. E, no seguimento de uma proposta apresentada por Portugal, será mobilizada a Reserva Agrícola, com mais cerca de 35 milhões de euros para disponibilizar até ao final do ano. São mais de 100 mil os agricultores apoiados e a quem este esforço orçamental chegou.
Permitam-me que destaque as medidas de apoio resultantes do Pacto. E destaco porque constituem, efetivamente, um valor histórico de apoio exclusivamente assegurado através do orçamento nacional. Mas não só: destaco porque em tempo recorde, cerca de três meses, chegou ao setor, chegou às pessoas… Quando a expectativa nunca foi inferior a seis meses, disponibilizámos 180 milhões de euros, dos quais cerca de 140 já chegaram aos destinatários. Uma resposta sem paralelo, cujos efeitos queremos que se façam sentir na vida do setor e nas vidas das pessoas.
A água, e nomeadamente, a rega (e os sistemas de bombagem) é sempre um tema falado no que respeita à eficiência no setor. Como está a Agricultura portuguesa a trabalhar a eficiência no setor do regadio?
Sabemos bem que conciliar o uso eficiente da água com a sustentabilidade energética é outro dos desafios que se coloca a todos os gestores dos sistemas de água para rega, agricultores e agroindústrias. Como temos vindo a referir, o uso de energias renováveis, como painéis fotovoltaicos, é o caminho certo, para não dizer o único, para a transição energética dos aproveitamentos hidroagrícolas e para a sustentabilidade que todos queremos e da qual todos precisamos. Além do seu menor impacto ambiental, permite atenuar, e de que maneira, os custos com a energia associados à distribuição e bombagem da água. O país tem a plena consciência do quão precioso é o recurso água. Um recurso que é evidentemente valorizado pelos agricultores, que sabem bem que é na gestão eficiente deste recurso que está a chave do sucesso, da produtividade e da viabilidade das suas atividades.
O país tem, digamos assim, duas realidades bem distintas no que toca ao acesso à água, divididas pelo Tejo, apesar do Nordeste Transmontano apresentar desafios muitos semelhantes aos enfrentados pelo Baixo Alentejo e pelo Algarve. Sendo a sustentabilidade e o reforço da eficiência um desígnio nacional, as prioridades são claras e nelas temos trabalhado, de forma muito articulada entre áreas governativas, mas sem abdicar do fundamental contributo dos agricultores e das suas associações. Os planos regionais de eficiência hídrica são exemplos disso. Mais que uma resposta à seca, buscam soluções a longo prazo, integradas e estruturais, para mais produção com menos recursos. É o caso do plano para o Alentejo, recentemente apresentado e que, depois da discussão pública, será sujeito à análise da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural e da Agência Portuguesa do Ambiente. Neste plano, cerca de 80% das medidas têm origem no setor agrícola. E, no total, estão associados cerca de mil milhões de euros de investimento, com alguns dos projetos já no terreno, como é o caso do aproveitamento hidroagrícola do Mira, os estudos para a instalação de uma dessalinizadora ou a ligação de Alqueva a Monte da Rocha. Mas este trabalho, como já referi, não se esgota a sul. E a prova disso é que já temos em marcha a definição do plano de eficiência hídrica para a região de Trás-os-Montes e Alto Douro.
Como é óbvio, além destas respostas, temos o Programa Nacional de Regadios, enquanto a grande estratégia transformadora da agricultura portuguesa. São mais de 800 milhões de euros de investimento, com 340 projetos já executados ou em execução, em mais de 120 concelhos do território continental. Um programa cujo futuro também está a ser desenhado. Depois de um estudo de levantamento do potencial e também mediante os contributos recolhidos através do Livro Branco do Regadio Público, traçaremos a Estratégia 20|30. No imediato e como complemento, destaco ainda o investimento PPR previsto para o Crato, o qual, com a construção da barragem e dos sistemas de rega do Pisão, concretizará uma velha ambição do Alto Alentejo.
A nível de utilização de energias renováveis, temos também já muitos exemplos de muitos agricultores que as utilizam (desde a fotovoltaica, solar e biomassa, passando pelo autoconsumo e soluções tecnológicas que ajudam a poupar energia e recursos). Dispõem de dados concretos sobre a penetração de renováveis no setor (e que regiões por exemplo mais apostam nelas)? E que perspetivas tem em matéria de crescimento de renováveis no setor?
As perspetivas de crescimento das renováveis no setor são elevadíssimas. Podemos afirmá-lo por tudo o que já abordámos nesta entrevista e também pelo que que nos é transmitido aquando das idas ao terreno. E o que nos chega reveste-se de preocupação. Uma preocupação cuja resolução passa exatamente pela compatibilização entre questões ambientais e questões relacionadas com a viabilidade das explorações. Ou seja, vamos continuar a dar apoio a estas preocupações. Isso é visível, por exemplo, nos investimentos em curso em Alqueva, que vão reduzir, em cerca de 50%, o valor das compras à rede de eletricidade. Além disso, temos como meta, apoiada pelo PEPAC 23.27, a instalação de uma capacidade de 22Mw para a produção de energia renovável.
O Plano Nacional de Energia e Clima para 2030 está a ser revisto e será entregue à Comissão Europeia no final de junho. É possível antecipar metas que englobem a Agricultura nesta proposta que irá chegar a Bruxelas?
O Ministério do Ambiente e da Ação Climática publicou, a 30 de junho de 2023, a primeira versão da revisão do Plano Nacional de Energia e Clima 2030 (PNEC 2030). Nesta revisão, Portugal antecipa, em quatro anos, a meta de incorporação de energias renováveis na produção de eletricidade (em 2026, 80% da energia produzida em território nacional será de origem renovável). Com isto, o país prepara-se para atingir a neutralidade climática em 2045.
Nesta 1ª versão, a meta para o setor da agricultura estabelece-se numa redução de 11% na emissão de gases com efeito de estufa (GEE), face a 2005, em linha com o PNEC aprovado em 2020. Esta meta poderá, porém, vir a ser revista, dado que os trabalhos vão continuar nos próximos meses, sendo que o prazo, para submeter a versão final à Comissão Europeia, termina a 30 de junho de 2024.
“Agricultores estão na primeira linha na defesa do nosso planeta”
Tem havido muitos receios de que a expansão da energia solar em Portugal possa retirar áreas à agricultura. Como olha a sra. Ministra para esta discussão? Ambos podem coabitar sem haver prejuízo para nenhuma área?
Temos um velho e mau hábito de insistirmos ora no oito, ora no oitenta. O país precisa de aproveitar a exposição solar e de aumentar a sua capacidade de produção de alimentos. Estas duas questões podem coabitar? Claro que sim. Podem, devem e vão! O exemplo que já referi – a unidade flutuante de produção de energia em Alqueva – é a prova disso, a par da instalação sobre os canais de rega, noutros regadios coletivos. Não ocupam áreas produtivas e, ao mesmo tempo, ainda contribuem para reduzir a evaporação e para mitigar o desenvolvimento de algas. E, também ao nível técnico, valorizamos, como critério de seleção, as candidaturas que procedam à instalação dos painéis fotovoltaicos nas coberturas das construções, em pequenas barragens, em charcas, ou noutras infraestruturas, tais como poços, tanques e depósitos de água, infraestruturas estas já existentes na exploração agrícola. Já em relação aos investimentos para autoconsumo, não prevemos que os agricultores optem por ocupar área produtiva com a instalação de painéis, seria um paradoxo.
Como antevê a transição energética no setor em Portugal, por exemplo, até 2030? Que podemos esperar mediante o caminho que estamos a desbravar?
O caminho é longo, percorrido a diversas velocidades e, recorrendo às vossas palavras, necessita de ser desbravado. Vamos continuar a trabalhar para cumprir todos os objetivos traçados pelo país e pela União Europeia. Com os planos estratégicos e os instrumentos financeiros disponíveis, não tenho dúvidas de que os agricultores vão, mais uma vez, demonstrar a sua capacidade de adaptação, a tal resiliência, que tão bem os caracteriza. Ou seja, vão continuar a contribuir, de forma decisiva, para a proteção do planeta, garantindo, assim, a preservação da biodiversidade, os aumentos de produção e um justo rendimento advindo da sua atividade. E uma certeza posso deixar a todos: o governo será sempre parceiro neste reforço da aliança entre sustentabilidade e competitividade.
Por fim, a Agenda de Inovação Para a Agricultura 2020-2030 – Terra Futura tem como grande mote uma ‘Agricultura mais inovadora, eficiente e sustentável’. A transição digital e energética é decisiva para alcançar esse propósito. Acredita que seremos capazes?
Toda esta entrevista suporta uma resposta afirmativa. Sim, somos capazes. Os agricultores estão na primeira linha na defesa do nosso planeta. Sublinho: a agricultura depende dos recursos naturais. E é possível, e essencial, uma agricultura em harmonia com a natureza. É, inclusivamente, desejável que assim seja, pois também a sustentabilidade pode ser um fator de competitividade e diferenciação.
Sim, vamos continuar a ser capazes. E é com essa convicção que, todos os dias, trabalhamos, desenhando e implementando estratégias políticas e instrumentos financeiros, procurando disponibilizar, aos agricultores, as melhores soluções e, claro, as melhores condições a um desenvolvimento sustentável. Porque, acreditem, o desenvolvimento dos territórios faz-se para lá da agricultura, mas não se faz sem a agricultura. E este setor, decisivo numa gestão ativa e coesa, é um depósito seguro de confiança e esperança no futuro.
Nota: entrevista publicada na edição n.º 135 – Revista Jovens Agricultores da AJAP. A sua reprodução, parcial ou na íntegra, requer autorização prévia da AJAP.